Simone Stockler ainda conversava com o porteiro na calçada do prédio quando a fumaça começou a sair do capô do carro. Não demorou muito para que o veículo, um Fiat Tipo, estivesse em chamas. Ela tinha 20 e poucos anos, era a década de 1990, e o modelo italiano, um dos primeiros importados a chegar ao país, era sucesso de vendas. Hoje, aos 49 anos, a empresária ficou surpresa ao ser informada de que finalmente pode receber a indenização pelo carro incendiado. Passados 23 anos, a ação civil pública movida pela Associação de Consumidores de Automóveis e Vítimas de Incêndio do Tipo (Avitipo) contra a montadora acaba de transitar em julgado, e quem teve prejuízos já pode se habilitar a receber o ressarcimento pelas perdas materiais, além do dano moral, mesmo que não faça parte da associação.
— Logo depois do incêndio entrei com a ação, mas confesso que não tenho o contato dos advogados e não lembro onde estão os documentos. Na época chamei os bombeiros e a polícia, só depois descobri que várias pessoas passaram pelo problema — conta Simone.
Segundo especialistas, esse caso evidencia a lentidão da Justiça brasileira. Rodrigo Terra, titular da 2ª Promotoria de Tutela Coletiva do Direito do Consumidor do Ministério Público do Rio, destaca que há diversas ações que tratam dos direitos dos consumidores e que tramitam há muitos anos no Judiciário. Ele cita o processo que discute a exclusão de prótese e órtese ligadas ao ato cirúrgico da cobertura da cirurgia por operadoras; a que discute tempo de espera na fila de bancos; e ainda a ação coletiva contra o reajuste da tarifa de ônibus no Rio, de 2003, ainda sem sentença em primeiro grau. Para o promotor, a profusão de recursos legais para obter a revisão de decisões judiciais é, em grande parte, responsável pela demora.
— O processo coletivo é subutilizado pelo sistema judicial, apesar de ter enorme potencial de resolver questões. Dada a sua importância jurídica e social, seu andamento deveria ser tratado como prioridade.
Fiat nega defeito
Localizar as vítimas é o maior desafio numa ação que levou mais de duas décadas, diz David Nigri, advogado que responde hoje pela Avitipo, afirmando que à época havia cerca de 70 casos registrados:
— Os endereços e telefones que temos estão desatualizados, há consumidores que já morreram. Quem teve prejuízos, independentemente de fazer parte da Avitipo, poderá ser indenizado.
O advogado explica ainda que não é possível falar em valor de indenização. Ao menos o valor atualizado do carro será pago, afirma. O dano moral varia caso a caso, segundo a decisão do Tribunal de Justiça do Rio — já que o recurso da montadora ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), onde o processo ficou por quatro anos, não foi acolhido. Cada consumidor, diz Nigri, terá de comprovar os danos. Boletim de ocorrência e fotos podem ser usados.
No caso da advogada Sandra Maria Alves Pires, de 55 anos, o prejuízo, além da perda do Tipo, na época com menos de três meses de uso, inclui o reembolso do carro do vizinho, que estava estacionado ao lado do dela na garagem:
— O carro se incendiou dentro da garagem. O prédio teve de ser evacuado, estragou o veículo ao lado do meu, tive de pagar outro carro ao meu vizinho. Ainda houve dano ao sistema hidráulico do prédio. A Fiat nunca me contatou, muito menos me ressarciu.
Para Fernando Capez, diretor executivo do Procon-SP, a situação hoje seria diferente:
— Em 1996, as instituições de defesa do consumidor eram incipientes. O Código de Defesa do Consumidor é de 1990. Hoje, o Procon notificaria a empresa para o recall e a indenização do consumidor, sem ir à Justiça.
Apesar de ter feito dois recalls, em 1996, devido ao risco de incêndio em cerca de 170 mil veículos importados entre 1993 e 1995, a Fiat, procurada, afirmou não ter identificado defeito de fabricação nos veículos. Ainda assim, confirma que, de forma preventiva, convocou os proprietários do Tipo a “ajustar e/ou substituir tubulações e mangueiras do sistema de direção hidráulica e de combustível”. A montadora assegura que, à época, atendeu todos os consumidores.
Para Ricardo Morishita, professor de Direito do Consumidor, a montadora erra ao não reconhecer o defeito de fabricação, após o Judiciário confirmá-lo:
— Defeitos podem acontecer, mas é fundamental transparência. É com ela que se constrói confiança, princípio jurídico brasileiro há 30 anos.
Saiba como receber a indenização
Propriedade: Para se habilitar à ação é preciso comprovar ter sido proprietário de um Fiat Tipo. Se não tiver mais o documento, pode-se recorrer ao arquivo do Registro Nacional de Veículos (Renavam).
Prejuízo: Para fazer jus à indenização, o consumidor terá de comprovar a ocorrência de dano no seu veículo e outros prejuízos que possam ter sido causados. Boletim de ocorrência, testemunhas e fotos podem ser usados para essa comprovação.
Ação: Os consumidores podem habilitar a ação civil pública (0052169981996.8.19.0001) ou entrar com ação individual para a execução, juntando a prova do trânsito em julgado.
Editor do caderno Carro e etc, Jason Vogel, dala de como o modelo, que chegou a ser o mais vendido do Brasil, saiu de linha após incêndios.
O Fiat Tipo era um hatch médio italiano que fez imediato sucesso no Brasil na época da reabertura das importações, nos anos 1990. Espaçoso e barato em relação aos veículos nacionais, chegou a ser o modelo mais vendido no Brasil por alguns meses.
As coisas iam muito bem até que começaram a pipocar seguidos relatos de incêndios. A história era sempre a mesma: o motorista manobrava o carro para estacionar, via fumaça saindo do capô e as chamas se alastravam.
O problema é que a mangueira do sistema de direção hidráulica não resistia quando o volante era girado até o fim, aumentando a pressão. Quando se levava a direção até o batente, a pressão do sistema aumentava e fazia vazar fluido hidráulico sobre o coletor de escape quente, gerando o incêndio.
A Fiat demorou a admitir o problema. No fim, fez o recall como devia.
Tempos depois, a linha de produção do Tipo foi transferida da Itália para o Brasil. A essa altura, contudo, a imagem do modelo já estava definitivamente queimada. A produção local durou pouquíssimo tempo.