Sonho de qualquer brasileiro acostumado a utilizar nossos serviços de transporte público, o carro próprio tornou-se quase um item folclórico. Para a revista americana Forbes, apenas rodas folheadas a ouro justificariam o preço que pagamos por aqui. Na prática, o buraco é muito mais embaixo. Nosso setor automotivo é uma eterna festa, onde montadoras e governos lucram e se divertem e você, como sempre, paga a conta.
Para qualquer governante de plantão, incentivar o setor automobilístico é quase um sinônimo de incentivar a economia e, claro, arrecadar. A lógica, por trás desta ideia não é difícil de entender. Cada carro a mais nas ruas é um incentivo para o setor de autopeças, que, sozinho, fatura R$ 100 bilhões por ano, quase duas vezes o que a JBS fatura por aqui, mais seguros contratados, mais consumo de gasolina (aquela que você paga 54% de impostos para abastecer), mais pagadores de IPVA, além de inúmeras fábricas construídas para atender às demandas das próprias montadoras.
Esta não é nem de longe uma festa recente. Há quase seis décadas optamos por tratar a indústria automobilística como sinônimo de progresso. Chamamos para cá montadoras asiáticas, europeias e americanas, dando a elas a certeza de pouca ou nenhuma concorrência com o setor externo, garantindo que importar um carro seria um desafio tão grande que qualquer espertinho logo desistiria.
Sem opções e vendo as grandes cidades crescerem sem alternativas eficientes de transporte público, a maioria dos brasileiros tornou-se refém deste modelo e acabou tendo de engolir carros de padrão inferior ao internacional, a preços muito mais elevados.
Ao contrário do que querem fazer crer as próprias montadoras, porém, esta não é uma consequência exclusiva dos impostos escorchantes cobrados por aqui, mas um acúmulo de fatores, muitos dos quais montadoras e governantes não parecem nem um pouco dispostos a mudar. Abaixo, resumimos alguns deles pra ajudar a entender melhor essa história.
1) Produzir no Brasil é mais caro
“Custo Brasil” é daquelas expressões que, a despeito do caráter técnico à primeira vista, têm uma explicação das mais simples possíveis, e os motivos pra isso você provavelmente já sacou: todo brasileiro já sentiu na pele o quanto nosso país parece viver um romance inabalável com a burocracia, a desconfiança por parte do setor público, a instabilidade jurídica e os custos raramente justificáveis para empreender ou simplesmente fazer negócios.
Uma logística deficitária, energia elétrica cara – a despeito da abundância de geração relativamente barata na nossa matriz energética (em especial por parte de hidrelétricas) – leis trabalhistas que muitas vezes inviabilizam o custo de contratar alguém (nunca é demais lembrar que pagamos por aqui as maiores taxas de impostos sobre o trabalho no mundo, ou R$ 57,56 em impostos a cada R$ 100 pagos por qualquer empresa) ou simplesmente a demora atípica para iniciar um negócio são problemas inescapáveis, ainda que você seja uma grande empresa e acredite poder compensar tudo isso com a mão amiga dos empréstimos subsidiados do BNDES.
Segundo a ANFAVEA, associação que reúne as montadoras em território nacional, fabricar um carro por aqui é até 60% mais caro que em outros países emergentes, e razões para isso não faltam.
Ainda que as montadoras tenham benefícios tributários para produzir, toda a cadeia que atende o setor e produz as autopeças está sujeita a este mesmíssimo custo, com o agravante de que os custos tornam-se cumulativos.
As chamadas sistemitas, empresas que produzem as peças necessárias para o processo final nas montadoras, enfrentam problemas comuns a qualquer empresa do país, tendo em vista o alto custo de nossas matérias primas, logística deficiente e a quase impossibilidade de se importar estas mesmas peças.
Segundo estudo da mesma ANFAVEA, o custo dos insumos produzidos aqui é até 40% maior do que na média mundial. Para cada US$ 100 que se gasta para montar um carro na China, são gastos US$ 160 no Brasil, ou US$ 120 no México.
Graças ao lobby de nossas siderúrgicas, que defendem suas práticas alegando gerar empregos vitais ao país, nosso aço é um dos mais caros do planeta e a importação é praticamente impossível.
Na prática, produzir um carro aqui consome em média 5,3 horas de trabalho, contra 2,6 horas no México. Some isso ao custo da nossa mão de obra e o resultado é um custo crescente, em nome da proteção do emprego nacional. Concorde ou não que devamos incentivá-los por estes meios, na ponta do lápis você paga por cada protecionismo, do operário de uma montadora ao grande grupo siderúrgico nacional, além do seu carro, um brinde de compensação.
2) A margem de lucro
Operar em um dos mercados mais fechados do planeta poderia ser algo desagradável para o setor. Afinal, impede que montadoras de médio porte cheguem por aqui e apreciem a festa, desfrutada em boa parte por quatro montadoras que concentram 53,33% do mercado.
Nada disso desanima as novatas, como a Hyundai, que recentemente entrou para o grupo dos quatro maiores vendedores nacionais de veículos. Ainda que não sejam públicas, dado que as montadoras não são nacionais e portanto seus balanços são publicados apenas no exterior, sem fazer distinção entre vendas aqui e nos Estados Unidos por exemplo, estima-se que a média de lucro das companhias aqui instaladas chegue a 10%, contra 2% nos Estados Unidos e 5% na média mundial.
Some a isto a margem maior por parte de revendedoras, e o lucro ganha papel relevante no preço final.
3) Os impostos
Se o lucro das montadoras assusta, a participação do Estado na brincadeira não sai por menos. Nossas taxas médias de impostos variam entre 48% e 53% do preço final, contra 21% na Argentina, 22% na Itália, 7,5% nos Estados Unidos, 5% no Japão ou 19% na Alemanha. Por onde quer que se olhe, somos campeões neste aspecto.
Ao contrário do que possa parecer, boa parte dos impostos não sai exatamente do bolso das montadoras, mas se acumula ao longo da cadeia de produção. Imagine por exemplo que uma empresa de aço pague 42% de impostos sobre seus produtos. Ao ser tributada, a montadora terá de pagar uma taxa similar com base no valor do aço comprado, já embutido no custo, e, sobre o custo do veículo, pagar os impostos. Em outras palavras: nosso imposto assume um efeito cascata, tornando produtos mais complexos – e com maior número de processos de produção – os mais taxados.
Na média, a cada R$ 100 faturados pela indústria, R$ 42 são impostos, em boa parte graças a este efeito cumulativo.
Em alguns dos casos mais bizarros, era possível – até decisão recente do STJ – que o governo cobrasse impostos sobre impostos, tudo porque, ao calcular quanto do ICMS uma empresa deveria pagar, os valores de PIS/Cofins entravam na base de cálculo.
Assuma por exemplo que um produto custe R$ 20, sobre os quais deverão ser cobrados 20% de ICMS. Até bem pouco tempo, era completamente legal que os governos estaduais cobrassem impostos não sobre os R$ 20 do custo do produto, mas sobre R$ 20 + R$ 2 de PIS/Cofins, fazendo você pagar 20% de imposto sobre os R$ 2 também.
Práticas como essa não são exceções, mas uma consequência da confusão tributária vivida no Brasil há décadas. Gastamos em média 2600 horas para pagar impostos, isto é, para garantir junto à receita que nossos impostos estão OK. No México, o gasto era de 286 horas em 2015, enquanto na Argentina ficava em 405 horas.
4) A demanda crescente
O brasileiro paga o preço da vaidade
Você já deve ter se deparado com afirmações desse tipo e não é difícil cair em algo assim. Afinal, em um país tão desigual, o apelo de ter maior independência com um carro próprio ou o celular top de linha pode pegar, e muito. Na prática, esta é uma parte pequena do valor final. Nossos desafios rotineiros e incentivos perversos acabam sempre pesando mais.
Note por exemplo que, das dez cidades com maior renda per capita do país, metade não possui sequer metrô subterrâneo, e não estamos falando apenas de cidades com desenvolvimento recente.
Nem a nossa empolgação com a Copa foi capaz de destravar obras urbanas tão relevantes em cidades como Curitiba. Em outras capitais, a escolha por BRTs se sobressaiu aos metrôs por questões meramente financeiras (sem contar aí os ganhos com externalidades de se ter menos carros circulando, poluição ou menos acidentes).
Pode parecer lógico, já que incentivar o transporte público voltado aos ônibus impacta a vida de milhões de pessoas. Em longo prazo, porém, com concessões sempre destinadas a meia dúzia de cartéis já estabelecidos, repetimos um erro de acreditar que modais neste estilo sejam capazes de convencer a população a migrar do seu automóvel para outros meios de transporte.
Ironicamente, foi justamente um dos meios mais travados pelos governos municipais nos últimos anos quem iniciou uma mudança. Coloque na ponta do lápis o custo de se ter um veículo hoje, incluindo gasolina, seguro, estacionamento, depreciação, e não é raro encontrar vezes em que um aplicativo de caronas possa sair mais vantajoso.
Justamente aí, na parte de incentivos, como alternativa em relação às tão frequentes multas da indústria arrecadatória, é que o gosto do brasileiro pode, enfim, mudar e impactar também o custo em longo prazo.
5) O mercado fechado
A popularização de marcas estrangeiras no setor na última década foi um daqueles fenômenos raros. Com o Brasil em alta, marcas de todo o mundo decidiram se instalar por aqui, incluindo nomes como Hyundai, que hoje figura no top 4 de maiores vendedores brasileiros.
Como de costume, o governo acabou enxergando nisso uma oportunidade para medidas um tanto quanto controversas. Por meio da lei de conteúdo nacional, incentivou empresas estrangeiras a virem produzir aqui e ampliou os custos de se importar.
Na teoria, a ideia faz bastante sentido. Empresas como CAOA ganharam escala ao importar veículos e revendê-los a um preço competitivo. Com a lei, acabaram construindo indústrias aqui, gerando emprego, renda e um eleitorado bastante feliz.
Produzir localmente algo que sairia mais barato importar porém, é uma decisão via de regra política, e como tal, tem seu custo diluído pela sociedade.
Justamente por nos prendermos a um debate sobre a importância de alguns setores como estes, que agreguem valor à economia, ou cerca de 21% do nosso PIB industrial hoje, acabamos drenando recursos de áreas em que poderíamos ser mais competitivos, não estivéssemos presos ao baile eterno que é a relação entre governo e montadoras.
Como na parábola do que se vê e o que não se vê, temos os empregos gerados pela indústria na parte visível, e os empregos que deixariam de ser criados ao gastarmos menos com coisas do tipo, e poupar para outros bens. O resultado é uma poupança menor do brasileiro, habituado a pagar mais caro em tudo, colaborando com problemas que se estendem bem além da indústria automobilística.
6) A falta de poupança do brasileiro
“Pague 2 e leve 1” é daquelas promoções rotineiras na vida de todo brasileiro. Ao contrário destas, onde o outro produto que você não leva é também chamado de imposto, no caso de bens como automóveis – rotineiramente financiados em parcelas a perder de vista – a conta pode chegar a números ainda mais grotescos. Falamos aqui de pagar entre impostos e o custo de financiamento até seis vezes o valor original de um veículo.
Motivos pra isso não faltam. A falta de poupança do brasileiro é um sintoma grave que quando aliado a um governo que não cabe dentro do seu próprio orçamento, torna-se um problema em qualquer área. A conta, entre poupança e crédito deveria, em tese, sempre fechar, não fosse um mero detalhe: 72% do crédito do país é consumido pelo próprio governo para se refinanciar.
No dia a dia, ao comprar um carro parcelado, você precisa literalmente disputar este empréstimo com as atrativas taxas pagas pelo governo para se refinanciar. O resultado é um custo quase invisível, mas bastante sensível no bolso. Some a isto o fato de que as empresas que necessitam ampliar sua produção para atender à demanda estão sujeitas às mesmas práticas e, no final das contas, parte considerável do seu veículo vem desta irresponsabilidade fiscal.
Custos maiores para produzir peças, custos maiores para financiar veículos etc. Nada escapa da lógica irresponsável de incentivar o país apenas por meio do gasto.
Fonte: Spotniks